quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

 O prédio da esquina Lachocaya Inóbilis


Um velho apartamento no centro da cidade, não se sabia o que era mais antigo, se a cidade ou o prédio. Ele ficava em uma esquina, logo a frente encontrava-se a praça, bela, porém decadente, fizeram daquilo uma tristeza, um ar mórbido. Algumas crianças em dias quentes tomavam sorvete, ele escorria pelas mãos e pingava no concreto, deixando- o melecado e colorido, do outro lado da rua, o supermercado, dali entrava e saia gente o dia todo, sacolas de todos os tamanhos, alguns arrancavam de dentro dela uma bebida, ou uma comida, e em seguida descartava ao chão formando assim um grande lixo até o final da tarde, ainda se via velhos sentados nos bancos da velha praça, papeavam, outros até carteavam, todo o tipo de povo andava por ali, a grande parte caminhando muito rápido, quase que uma corrida contra o tempo, a cidade nunca parava, apesar de sua decadência, era gigantesca, a ponto de engolir os que nela habitam. Ninguém, ou quase ninguém parava para olhar uma vitrina, ou uma escultura, ou até mesmo um prédio. Vez e outra alguns recebiam uma reforma, uma tinta, alguns reparos, cá e lá, sabe como é. Cada um com suas histórias, com seus aromas e energias dos que ali moraram. Uns elegantes, outros maltrapilhos, outros sem personalidade, opacos e vazios, cada prédio era singular. E eu gostava de entrar neles e sentir tudo isso, era como viajar em décadas passadas, ou até centenas, isso dependia do ano de nascimento de cada imóvel.

Na praça, havia uma excêntrica senhora que alimentava os pombos, a praça era cheinha deles, e quando ia se aproximando do entardecer, ela, miúda e forte, vinha com um balde cheio de comida, e assim era, todo o santo dia, chovia pombos, era lindo de se ver, era de uma poesia encantadora, fazendo os olhos brilharem por tamanha alegria. Havia muitos contratempos em relação à tal alimentação aos pombos, existiam aqueles que se posicionavam contra, outros ainda odiavam a atitude da velha chegando ao ponto de odiá-la também, desejando o fim daquilo, vários cidadãos chegavam ao ponto de envenenar as criaturas divinas. Quanta maldade! E aconteceu inúmeras vezes, de tempos em tempos encontravam-se pombos estatelados, mortos pelo simples fato de viverem no mesmo espaço dito, considerado urbanamente para humanos. Ah, humanos!!! Que tipo de gente faria tamanha malevolência.

A história da velha e os pombos não acaba aí, bem, na verdade sim e não. Neste inverno a idosa que alimentava os pombos faleceu. Tantos lamentaram, ela era uma figura histórica! Parecia uma personagem de algum filme francês, ali, por uma praça qualquer de Paris, particularmente sempre fiz uma conexão com aquela animação “A velha e os pombos”, brilhante!!! Genial!

The Old Lady and the Pigeons de Sylvain Chomet. Um curta bastante reflexivo e com bastante conteúdo filosófico, apesar de parecer uma simples animação.

Mas voltemos ao foco! Aquele prédio, aquele lá do início, decadentemente melancólico, era um antro das perdições. Durante o dia, avistava-se um gato preto em uma das janelas, especificamente a do terceiro andar de frente para a praça, em outra janela, virada para a outra rua, se via outro, em cores preto e branco. Estavam sempre por ali, olhando o mundo e muito provável, os pombos, com aquele desejo sórdido de devorá-los, ainda mais bem nutridos, fartos, os gatos sonhavam acordados e por sorte as janelas eram teladas, do contrário em suas viagens até o mundo dos pombos, poderia transformar-se em uma terrível tragédia. Se bem que, os andares não eram muito altos, com sorte, os gatos sairiam ilesos e ainda poderiam correr até onde os pombos se encontravam e ao menos tentarem fazer a festa. E dizem que gatos tem sete vidas!

Mas é quando a noite caia, que os gatos dormiam e os pombos se recolhiam que tudo mudava. Ali, neste velho prédio, gasto e desbotado pelo sol, moravam prostitutas, travestis, traficantes, usuários de drogas, toda esta gente enxotada, esculachada e marginalizada. Quando escurecia, entravam e saiam pessoas a todo o tempo.

As damas saiam para as ruas do grande centro, pelas esquinas, seminuas, com suas faces endurecidas de maquiagem, escondiam-se entre o ruge e o batom. Umas apareciam ao amanhecer, outras voltavam logo trazendo consigo um cliente amargurado, o doce noturno o amortecia.

Os cavalheiros, ficavam em estado de alerta, era um vuco vuco durante a madrugada inteira. As noites e madrugadas por ali eram verdadeiramente estonteantes.

Entre pombos e gatos, os ratos, estes que escondem-se para viver e talvez sobreviver! E a cidade os engolia lentamente, assim como ela faz com todos e ninguém enxerga!



A mulher de branco do relógio

 

A mulher de branco do relógio da cozinha



Havia um relógio antigo na parede da cozinha, era enorme, de madeira, muito antigo. Desde que a casa fora construída ele havia sido colocado ali, milimetricamente escolhido por Dona Anna, a proprietária da casa, naquele espaço, naquele cantinho da cozinha.

Muitos anos se passaram, o único filho do casal tornou-se adulto e foi embora, ficando então apenas o casal, envelhecendo cada vez mais, e a casa, naturalmente também sofria o mesmo processo e degradação.

Durante uma vida, ali na casa, aquele relógio nunca mudara de lugar, encontrava-se perto da porta que dá acesso aos demais cômodos, era como que um portal.

Nestas décadas que iam passando muito da mobília ia sendo substituída quando necessário, todavia o relógio nunca teve em si um arranhão se quer.

Dona Anna já passando dos seus bem vividos 80 anos, começava a apresentar sinais de esgotamento mental, lentamente sua memória iniciava um processo de adormecimento, seu neto que vivia muito distante pouco vinha ver os avós, mas quando a avó deu uma explícita piorada, ele compareceu imediatamente. O jovem tinha uma espécie de mediunidade, era espiritualmente evoluído, via coisas que outros nem imaginavam que existia, muito menos habitando seus lares, lugar de sossego e paz.

Logo no primeiro dia na casa dos avós, ele sentira algo muito estranho, pesado, ainda não sabia o que era, mas sabia que algo não ia bem. Na véspera do aniversário de seu avô algumas pessoas estavam presentes, reuniam-se na cozinha da casa para comemorar o aniversário do avô, o jovem neto olhou para o relógio e viu uma mulher esguia e pálida, com trajes brancos, intacta, apenas ali, não se movia, aliás, movia os olhos, apenas eles, não poderia se saber o porquê de estar ali, e então foi a primeira vez que ele a vira.

Ela acompanhava cada movimento das pessoas que estavam ali, sim, parece um clichê, de filme sobrenatural, ou de terror, aqueles que arrepiam as espinhas, mas não era, e creio não ter sido a imaginação do rapaz, ele já tivera experiências semelhantes anteriormente. Todavia, ele não sabia decifrar o enigma, se era uma boa ou má alma, e o motivo de estar ali.

Ele fora convidado para passar a noite lá, mas ao chegar no quarto onde dormiria, deu de cara com um ser nada agradável, outro fantasma, deitado na cama, tinha olhos vermelhos e profundos, retirou-se dali.

Alguns dias depois, na cozinha da casa dos avós, a mulher do relógio não estava mais lá.



segunda-feira, 20 de junho de 2022

Entre rosas e espinhos, o milho

 

  • Março de 1979, a família acabara de chegar a São Paulo, com toda a economia feita e com a herança do falecido pai, Jânio comprara uma velha casa ao final de uma rua pacata e bem arborizada.A casa precisava de algumas reformas, estava há muito tempo abandonada, pintura descascada,infiltrações, vazamentos, o portão de ferro, praticamente se via alguma pintura, bem como o cercado da propriedade, a energia precisava ser religada. O espaço era abundante, percebia-se que outrora o jardim fora muito bem cuidado, bem como a horta e plantação aos fundos do imóvel. Era realmente um bom espaço, com um velho poço aos fundos de onde em outra época fora um lindo milharal.Jânio pouco a pouco ia reformando a velha casa, e dando vida ao lugar, a mãe contava com boa saúde, era aposentada e gostava de mexer na terra, então dona Gertrudes, ficara com a responsabilidade de tomar conta do jardim, Dalila por sua vez, assumia a limpeza da casa e cozinhava, Jânio que durante o dia trabalhava como professor de direito, quando chegava em casa, ao final do dia, ia consertando tudo aquilo que necessitava, inicialmente foram as infiltrações e vazamentos, feito isso, começara a pintura na parte interna do imóvel, depois viria a pintura da parte de fora, e, por fim, grades e portão.

    E assim a vida passava calmamente, todos tranquilos e felizes na nova morada. Dia após dia, mês após mês, ano após ano….Desde a morte do pai, Jânio assumira fielmente todo o tipo de amparo e cuidados com a mãe e irmã era o provedor da família, dona Gertrudes contava 63 anos, enquanto a irmã caçula apenas 17 anos. Para o jovem adulto, com grandes responsabilidades, estava tudo bem, afinal não havia casado, tampouco tido filhos. Então cuidar da mãe e da irmã não era um problema, e sim uma satisfação, visto também, que era cuidado por ambas, afinal a irmã tomava conta da casa, cozinhava, a mãe gostava de cultivar as flores e os vegetais, logo, cada um cumpria com sua parte.

    Com o passar dos anos dona Gertrudes começara a adoecer lentamente, Dalila, já sem esperanças de uma vida diferente daquilo que vivera desde a infância, seus sonhos não cabiam em si, desanimava cada vez mais. Jânio, era um sovino solteirão e mal resolvido. De nada adiantava a irmã solicitar ajuda, estava definitivamente exausta de tantos afazeres domésticos, quanto mais o tempo passava, mais se desgastava, mais angustiada se sentia.

    O fardo começava pesar de acordo com os anos. A esclerose da mãe piorava, Dalila já passava a ser responsabilizada de tudo, ela não dava conta, era muito trabalhoso, exigia tempo e energia, e era preciso que alguém viesse para ajudá-la, ou melhor, assumir o comando da casa.

    Um enorme peso pairava sobre o lar da família, a hostilidade se instalara naquele local enquanto nada era feito. Mais alguns anos se passaram e Dalila não suportando mais a situação começava a pensar em como acabar com aquela situação maçante para si e pôr fim, e finalmente conquistar seus objetivos. Planejara silenciosamente o seu propósito diabólico.

    O ano era 1984, Dalila como de costume, todos os dias dava os medicamentos para a mãe, esta, incapacitada de fazê-lo sozinha, e dependendo absolutamente da filha para tudo, naquela tarde outonal, as folhas dos plátanos da rua caíam violentamente, havia bastante vento, a rua, como de costume se encontrava tranquila e praticamente inabitável, um gato atravessava a rua e subira no muro da velha casa, Dalila preparou os remédios que fizessem a mãe adormecer profundamente, e quando a idosa finalmente caiu em sono profundo, a jovem com um machado deu um golpe certeiro na velha, a enrolara em um cobertor, depois em um grande saco plástico, amarrara uma corda, e a enterrara no jardim da casa, jardim este, por anos cultivado pela mãe quando ainda exalava razoavelmente saúde. Em suas memórias, Dalila recordava o trabalho árduo para restaurar o solo rígido e iniciar a nova plantação das rosas vermelhas que por ali habitavam e ornamentavam o belo jardim cuidadosamente zelado por sua mãe. O momento era de tristeza aliado alívio, um sentimento estapafúrdio.

    O corpo da velha fora cuidadosamente depositado na cova feita por Dalila na noite anterior, em seguida pés de roseiras igualmente vermelhas preencheram o buraco onde a mãe dormiria e descansara para a eternidade.

    Jânio, ao final do dia, chegara em casa, exausto e com muito sono, sentara na mesa da cozinha e pediu que a irmã preparasse um chá, jamais imaginaria que no chá haviam ervas que danificariam sua vida, interrompendo-a bruscamenteDepois de ter bebido o chá quente, ainda comera uma torrada, fora até o banheiro, embebedou-se da ardente água que percorria pelo seu corpo, juntou uma toalha palidamente desbotadas causadas pelos danos de sua velhice, em seguida fora até seu quarto vestiu-se com um roupão azul acinzentado, quase que indefinível era a sua a cor, combinando com o restante do recinto mórbido, Jânio sentou-se na cadeira de balança, que rangia, fazendo um barulho estrondoso, como todas as noites estava lendo um livro, ele apreciava o tema criminais. Adormecera na cadeira, e esta, cada vez emitia menos barulho.

    Em meio à madrugada Dalila entrara no quarto do irmão, para averiguar se ainda vivia, o relógio tilintava 3 horas, Jânio não respirava mais, parecia estar adormecido, segurando o livro em suas mãos gélidas, uma manta cobria suas pernas, neste instante seu coração não pulsava mais, Jânio dormira para sempre. E o mesmo foi feito com seu imundo corpo de homem pão-duro, que passara parte da sua medíocre existência ceifando a jovem irmã de seus sonhos, seus desejos e sua ânsia de viver. Dalila já havia preparado o solo do quintal, não foi tão fácil, visto ali existia um milharal, quase que sem espaços, um pé do outro, deu trabalho, mas obteve sucesso no fim. A irmã fizera o mesmo que anteriormente cometera com a mãe, cobertores, plásticos e corda. Então depositou o corpo do irmão na vala.

    Feito o ato, missão cumprida! Ela dormira tranquilamente, sem pesadelos ou culpa, em seus ouvidos ressoava uma agradável canção que assemelhava a um anjo.

    Na manhã seguinte os pássaros celebravam alegremente o dia e o sol que surgia no límpido no horizonte, assim como as flores desabrochavam coloridas e vibrantes. Dalila com sua pequena mala de sonhos seguiu rumo à estação de trem.