Ele era um
sujeito pacato e poderia dizer que até mórbido em certos aspectos de seu
cotidiano, cultivava poucas amizades, praticamente não saia de casa, passava as
tardes sentado na velha poltrona já rasgada lendo seus livros deteriorados pelo
tempo e já servindo de alimento às traças.
Cultivava um gosto um tanto peculiar, poderia se dizer excêntrico.
Cuidava de seu jardim interno como cuidaria de um filho, lá mantinha as
espécies mais peculiares, plantinhas que se alimentavam de insetos, porém
inseto algum entrava ali, logo ele preparava armadilhas para captura-los e dar
de alimento a suas plantas.
E assim
passavam os seus dias e as suas noites. Dormia e acordava, lia, capturava
insetos, alimentava as plantas. Um dia fora até sua caixa do correio e recebera
um presente um tanto inusitado, um telescópio, então pensou o porquê de alguém
mandar aquilo para ele. Recolheu o presente com zelo e o largou em sua mesa da
biblioteca. Sentou em frente a ele e ficou um tempo olhando para o objeto.
A noite caiu
e ele adormeceu, no dia seguinte instalou o presente oculto em sua janela no
sótão, acima das demais janelas vizinhas e passou a usá-lo. E daquele dia em
diante sua vida mudou drasticamente, abandonou a monotonia e a morbidez em que
viva até o momento. Passou a vigiar os vizinhos, jamais alguém suspeitaria
afinal o homem nunca saia de casa, jamais era visto, era tão discreto quanto o
sol em dia chuvoso. E então começou a sentir o prazer da vida, vigiando a vida
alheia.
Assim foi por
alguns dias, avistara uma senhora cozinhando, ela usava um velho avental,
colocava algo no forno para assar ou apenas aquecer, não pode distinguir o que
ela colocara ao forno, mas ela parecia feliz, ria enquanto fazia determinada
tarefa. Depois viu uma criança brincando com sua boneca de pano, em seguida um
cão recolhendo o jornal e levando para casa. Era tudo tão divertido, era como
se ele vivesse aquelas vidas. A vida dos outros.
Durante a
noite novamente subiu ao sótão e mirou uma casa onde um jovem casal namorava,
em seguida um homem chegando em casa e acendendo as luzes até então apagadas, o
homem largou o chapéu sob a mesa, aqueceu um líquido e o ingeriu, ele parecia
reflexivo, talvez não tivesse tido um bom dia, aliás uma boa noite. Talvez
estivesse deprimido, então o protagonista sentiu um vácuo ao ver aquela cena e
buscou outra janela.
A última cena
o deixara aborrecido então abandonou a sótão e fora dormir. Na manhã seguinte
levantara da cama e enquanto tomava o café da manhã pensava em seu ato de
vigiar. Sentiu-se mal e decidiu que não mais o faria, pensou que aquilo não era
correto embora fosse tentador e divertido, não cabia a si vigiar a vida alheia,
isso era uma sacanagem, um desrespeito, antiético e invasivo. O dia passou, e
ele buscara fazer outras coisas, acabou que caiu na velha rotina. Ao anoitecer
já entediado e tendo a possibilidade de subir ao sótão e viver uma vida que não
lhe pertence, rompeu consigo próprio, com seus princípios e subiu. Inicialmente
as mesmas cenas cotidianas, pessoas cozinhando, olhando televisão, lendo,
crianças brincando, nada de mais. Mas com o passar das horas algo profundamente
assustador, um homem espancava uma mulher, podia ver que ele a agredia
violentamente, o homem ficou sem saber o que fazer, a mulher era a vítima
indefesa, não relutava, e o seu violentador não dava trégua. Mais uma vez
pensara que não era correto espiar, mas pensou também que deveria fazer algo,
chamar a polícia, fazer uma denúncia anônima, fazer algo para ajudar a mulher
aparentemente indefesa. Mas ficou sem ação, e acabou nada fazendo, outra noite
que fora dormir mal pelas cenas vistas naquela noite.
Depois de um
tempo já na cama, com sono, mas não conseguindo dormir finalmente adormecera.
Na manhã seguinte percebera um vulto nos arredores, pessoas caminhando e
falando alto, a polícia, então fez algo que raramente faz, abriu a porta e foi
ver o que tinha ocorrido. Para sua surpresa a mulher cuja qual espiara sendo
espancada na noite anterior estava morta.
A casa
abandonada, cheirando à morte e apenas ela, esvaindo em sangue recostada na
poltrona da sala e o cão deitado ao lado do cadáver. Seu assassino fugira sem
deixar rastros, visto que era um amante da jovem assassinada, e mantinham o
caso em segredo.
E ele ficara
atormentado ao saber que a morta vivia só, somente ela e seu cão, visto que a
mulher era desprovida de visão, e era guiada por seu cão e isso explicava muita
coisa. Fora espancada até a morte por que não podia se defender, não via nada,
e seu amante tornara-se o inimigo, inimigo este que acabara com sua vida em um
curto tempo.
A polícia
mandou o corpo para o IML, tentou fazer contato com a família, mas não foi
possível, a moça era demasiadamente misteriosa e aparentemente não tinha
família, ao menos nada encontraram em sua casa que pudesse identificar algum
parente ou uma pessoa próxima.
O terrível
dia finalmente chegara ao fim e o homem olhava para a casa e cenas da noite
anterior lhe vinham à mente, e cada vez era mais atordoado com aquilo. Estava prestes
a ter um colapso nervoso, começara a caminhar pela casa, de um lado para outro,
acendera um charuto, sentara na poltrona e começara a bater fortemente com os
dedos na mesa. Estava mentalmente exausto, e sem saber o que fazer.
Deitou-se e
tentou dormir, mas não obteve sucesso, e virando de um lado para o outro
levantou-se e caminhara fumo a sua biblioteca, abriu uma gaveta, pegou sua
arma, apontou-a para seu cérebro e apertou o gatilho.