domingo, 6 de julho de 2014

A vida dos outros (quando se vive uma vida que não lhe pertence)

Ele era um sujeito pacato e poderia dizer que até mórbido em certos aspectos de seu cotidiano, cultivava poucas amizades, praticamente não saia de casa, passava as tardes sentado na velha poltrona já rasgada lendo seus livros deteriorados pelo tempo e já servindo de alimento às traças.  Cultivava um gosto um tanto peculiar, poderia se dizer excêntrico. Cuidava de seu jardim interno como cuidaria de um filho, lá mantinha as espécies mais peculiares, plantinhas que se alimentavam de insetos, porém inseto algum entrava ali, logo ele preparava armadilhas para captura-los e dar de alimento a suas plantas.
E assim passavam os seus dias e as suas noites. Dormia e acordava, lia, capturava insetos, alimentava as plantas. Um dia fora até sua caixa do correio e recebera um presente um tanto inusitado, um telescópio, então pensou o porquê de alguém mandar aquilo para ele. Recolheu o presente com zelo e o largou em sua mesa da biblioteca. Sentou em frente a ele e ficou um tempo olhando para o objeto.
A noite caiu e ele adormeceu, no dia seguinte instalou o presente oculto em sua janela no sótão, acima das demais janelas vizinhas e passou a usá-lo. E daquele dia em diante sua vida mudou drasticamente, abandonou a monotonia e a morbidez em que viva até o momento. Passou a vigiar os vizinhos, jamais alguém suspeitaria afinal o homem nunca saia de casa, jamais era visto, era tão discreto quanto o sol em dia chuvoso. E então começou a sentir o prazer da vida, vigiando a vida alheia.
Assim foi por alguns dias, avistara uma senhora cozinhando, ela usava um velho avental, colocava algo no forno para assar ou apenas aquecer, não pode distinguir o que ela colocara ao forno, mas ela parecia feliz, ria enquanto fazia determinada tarefa. Depois viu uma criança brincando com sua boneca de pano, em seguida um cão recolhendo o jornal e levando para casa. Era tudo tão divertido, era como se ele vivesse aquelas vidas. A vida dos outros.
Durante a noite novamente subiu ao sótão e mirou uma casa onde um jovem casal namorava, em seguida um homem chegando em casa e acendendo as luzes até então apagadas, o homem largou o chapéu sob a mesa, aqueceu um líquido e o ingeriu, ele parecia reflexivo, talvez não tivesse tido um bom dia, aliás uma boa noite. Talvez estivesse deprimido, então o protagonista sentiu um vácuo ao ver aquela cena e buscou outra janela.
A última cena o deixara aborrecido então abandonou a sótão e fora dormir. Na manhã seguinte levantara da cama e enquanto tomava o café da manhã pensava em seu ato de vigiar. Sentiu-se mal e decidiu que não mais o faria, pensou que aquilo não era correto embora fosse tentador e divertido, não cabia a si vigiar a vida alheia, isso era uma sacanagem, um desrespeito, antiético e invasivo. O dia passou, e ele buscara fazer outras coisas, acabou que caiu na velha rotina. Ao anoitecer já entediado e tendo a possibilidade de subir ao sótão e viver uma vida que não lhe pertence, rompeu consigo próprio, com seus princípios e subiu. Inicialmente as mesmas cenas cotidianas, pessoas cozinhando, olhando televisão, lendo, crianças brincando, nada de mais. Mas com o passar das horas algo profundamente assustador, um homem espancava uma mulher, podia ver que ele a agredia violentamente, o homem ficou sem saber o que fazer, a mulher era a vítima indefesa, não relutava, e o seu violentador não dava trégua. Mais uma vez pensara que não era correto espiar, mas pensou também que deveria fazer algo, chamar a polícia, fazer uma denúncia anônima, fazer algo para ajudar a mulher aparentemente indefesa. Mas ficou sem ação, e acabou nada fazendo, outra noite que fora dormir mal pelas cenas vistas naquela noite.
Depois de um tempo já na cama, com sono, mas não conseguindo dormir finalmente adormecera. Na manhã seguinte percebera um vulto nos arredores, pessoas caminhando e falando alto, a polícia, então fez algo que raramente faz, abriu a porta e foi ver o que tinha ocorrido. Para sua surpresa a mulher cuja qual espiara sendo espancada na noite anterior estava morta.
A casa abandonada, cheirando à morte e apenas ela, esvaindo em sangue recostada na poltrona da sala e o cão deitado ao lado do cadáver. Seu assassino fugira sem deixar rastros, visto que era um amante da jovem assassinada, e mantinham o caso em segredo.
E ele ficara atormentado ao saber que a morta vivia só, somente ela e seu cão, visto que a mulher era desprovida de visão, e era guiada por seu cão e isso explicava muita coisa. Fora espancada até a morte por que não podia se defender, não via nada, e seu amante tornara-se o inimigo, inimigo este que acabara com sua vida em um curto tempo.
A polícia mandou o corpo para o IML, tentou fazer contato com a família, mas não foi possível, a moça era demasiadamente misteriosa e aparentemente não tinha família, ao menos nada encontraram em sua casa que pudesse identificar algum parente ou uma pessoa próxima.
O terrível dia finalmente chegara ao fim e o homem olhava para a casa e cenas da noite anterior lhe vinham à mente, e cada vez era mais atordoado com aquilo. Estava prestes a ter um colapso nervoso, começara a caminhar pela casa, de um lado para outro, acendera um charuto, sentara na poltrona e começara a bater fortemente com os dedos na mesa. Estava mentalmente exausto, e sem saber o que fazer.
Deitou-se e tentou dormir, mas não obteve sucesso, e virando de um lado para o outro levantou-se e caminhara fumo a sua biblioteca, abriu uma gaveta, pegou sua arma, apontou-a para seu cérebro e apertou o gatilho.